Especial

8 DE MARÇO, 8 MULHERES

 

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, reunimos oito histórias de mulheres que simbolizam muitas outras do Ipiranga. As mulheres ipiranguistas vão à luta.


Josefina

“A vida é um segredo”

Dona Josefina está aproveitando o fim de tarde sentada à soleira da sua porta, na rua Agostinho Gomes. Ao seu lado, espichada em branco e preto a boa distância, a cadela Lua e sua comprida coleira rubra.

Dona Josefina está com 80 anos, o cabelo pintado de lua, liso e comprido, reluz com o sol da tarde.

Uma vida vivida: casou-se, teve três filhos (um deles, hoje desempregado, vive com ela), morou em diversas casas e bairros (o valor do aluguel determinando a mudança), acumulou muitos empregos e funções, em firma e em casa de família. “Em firma é melhor porque é mais seguro”, garante.

Um pensamento ela decifrou do enigma da vida, que ele nunca termina: “A vida é um segredo, porque nunca se sabe o dia de amanhã.”

A Lua é meio aluada e não vai com todo mundo, não, ressabiada. Os dentões se entremostram na bocarra brava. É só com a vizinha que ali vem pela calçada, com seus dois cães, que a Lua vai, a passeio. Dona Josefina já não aguenta a força do arroubo da companheira, que puxa muito.

Dona Josefina e a cadela Lua são algo tão cotidiano, tão simples e tão humilde, que emocionam. Talvez porque pareçam um chamado à despreocupação e descanso, quando a gente se sente tão cansada e tão sem paz.

A alça metálica pregada no batente da porta serve para que Dona Josefina possa se apoiar ao entrar, transpor a soleira mais elevada da porta e entrar com segurança, porque o chão, lá dentro, é mais embaixo. Por ali a água pode subir, em dia de forte chuva, e convém se proteger.

E, com a mão apoiada nessa alça, Dona Josefina entra com cuidado e fecha a porta marrom. Daqui a pouco a Lua volta.


Iracema

Lições de vó para neta

“Sou uma florzinha desfolhada”, sorri magrinha e pequenina dona Iracema Carvalho, de 89 anos, olhos azuizinhos.
É moradora daquela casa da rua General Lecor desde 1945 e está neste domingo (27), quando o Ipiranga completa 436 anos de existência, de vassoura na mão para varrer a calçada e o meio-fio daquele pedaço de chão.

No meio da pandemia, de luvas plásticas e máscara protetora, faz a sua parte pela zeladoria local, contra entupimentos de bueiros e enchentes, na várzea do vizinho Tamanduateí.
“Não sou de ficar parada. Quando me canso, faço minhas palavras cruzadas e tomo meu cafezinho.”

Dona Iracema é filha de pai alemão, Benedito, e mãe descendente de italianos, Dusolina. Possui apenas uma irmã, Dirce, e um único filho, Eduardo. Na verdade dois filhos, porque dona Iracema ascendeu a nora, Margarete, a essa posição também. “Ela é um pé de boi, faz tudo por mim.” A expressão do mundo animal foi uma herança da “nonna” Heloisa, dita originalmente em italiano. “Mas não me lembro mais como ela dizia.”

A vó Heloisa foi figura central na formação de dona Iracema. “A gente só aprende a viver através da dor. Não adianta se revoltar contra nada. E a religião não muda ninguém, o que muda é o que a gente tem aqui [apontando para o lado esquerdo do peito].” Lições de Heloisa.
Um espiritismo habita seu pequenino ser, ora com mais ou menos força.

“Alguma coisa deve existir depois da vida. Deve haver algo espiritual. Meus anjos da guarda me ajudaram a aguentar os momentos mais difíceis.”

“Tive mostras infinitas de que depois da morte a vida continua lá em cima. Mas em alguns momentos ainda vacilo e aí peço perdão. [Vacilo] de não aceitar a vida como ela é. Não que queira grandeza ou riqueza. Através de dores e lágrimas, aprendi que não somos nada.

Não sei se o senhor vai acreditar no que falo: hoje acredito em reencarnação, porque as provas que tive são incomparáveis.”
Dona Iracema recorda um momento de extremo desalento, em que orou com desespero e lágrimas ao tio morto pedindo uma prova de vida, da vida após a morte. Quando dormiu, estava num horizonte azul e amplo, como um céu aberto, com campos de flores. Lá ao fundo estava o tio, sentado.


Thainá

A menina, o skate e o museu

Thainá Simon @thaina_simon ganhou seu primeiro skate no aniversário de 7 anos. Foi paixão à primeira manobra. Confirmação da máxima tal mãe, tal filha, já que Cristiane, a mãe, também era praticante do skate, na modalidade de rua (street).

Thainá então vivia, como ainda vive, numa rua próxima ao Museu do Ipiranga e foi nesse endereço sua estreia no esporte, na chamada Ladeira dos Coqueiros, que sai junto do jardim francês do museu e conduz ao Monumento à Independência, na porção inferior do terreno.

Vinte anos depois da estreia, agora aos 27 anos, ela é uma das líderes entre as mulheres skatistas no museu e no Brasil, referência na modalidade de descer ladeiras (downhill), campeã brasileira.

“Tudo na minha vida aconteceu por causa do museu, de onde nunca mais saí desde a minha infância. Convites, trabalhos, patrocínios, amigos, tudo”, agradece.

Thainá é reconhecida por seu jeito descontraído, mas sério ao mesmo tempo, concentração e dedicação em busca do objetivo, seja qual for.

Já coloriu muros do Ipiranga e hoje pinta corpos, à frente do estúdio de tatuagem Cobra Coral @cobra.coral.tattoo

Recentemente se formou comissária de bordo.

Na terra e no ar (e também no mar, porque ela surfa), lá vai a Thainá e a sua fome de vida.

“A excelência não é um feito, mas um hábito”, filosofa com pensamento aristotélico, frisando a importância da prática, do treino, da disciplina para se alcançar o bom resultado.

Thainá Simon comprova a força da nova geração de mulheres do Ipiranga, que continua a saga das pioneiras, das tecelagens, das fábricas, que foram há um século ou mais à luta com suas próprias mãos.


Elisabete

O cão vence o luto

Elisabete, mãe de quatro filhos (Regina, Ana Paula, Maurício e Alexandre) e também do malandrão Schummy, em homenagem ao piloto alemão de F1.

O cão chegou à casa dela alguns anos atrás, quando o marido morreu. Foi a forma de os filhos a reanimarem, porque dona Elisabete desanimou.

Schummy, grande Schummy!, se transformou num grande motivo de vida para essa mulher resiliente de olhinhos puxadinhos: onde está um está o outro. São figuras muito conhecidas aqui na região do Independência, lugar favorito do Schummy, onde estão seus amigos. Nos lockdowns ou quase, Schummy se entristeceu com a interdição do local e Elisabete também.

Outro dia a Elisabete contou que notara algo estranho no malandrão: ele adquirira os mesmos gestos, até o mesmo gênio, do marido falecido. Parecia uma possessão, sorriu.

Dona Elisabete era muitos anos mais nova do que o marido e, no fim da vida dele, cuidou do seu homem. Ele insistia em seguir sozinho pelas ruas, brigava quando via a mulher se aproximar, mas ela ia quietinha alguns metros atrás, ele esbravejando na frente, para dele cuidar.

Moravam em Itaquera, desde um tempo em que havia muitas chácaras verdureiras por lá. Sair de lá, para o marido, só mesmo para uma casa com jardim. E assim foi feito, para uma casa ajardinada aqui pertinho, mas para ela o marido não chegou a mudar.

Schummy, que é um pestinha roedor de móveis e de calçados, ganhou a companhia recentemente de um adestrador, quer dizer, de um professor. E agora parece que se tornaram melhores amigos, Elisabete aceitou.

Na aguda pandemia, dona Elisabete ficou retida em casa, os filhos cortaram-lhe os passeios.

Cadê aquela senhora tão amável, de cabelos brancos cortados à altura do ombro, sempre de vestido de malha, casaquinho, sapatinhos baixos?

Neste Dia das Mães, ela ainda não passou por aqui com o Schummy. Que continue bem, porque a gente gosta muito dela e dela sente falta, do Schummy, o malandrão, também.

A todas as nossas mães do Ipiranga, todas lindas e cuidadoras, nosso desejo de realização e sentimento de gratidão.


Stella

Uma menina e o sentimento do mundo

Uma menina e o sentimento do mundo.
Eis a menina, parece ter saído de algum livro de histórias, boneca feita de gente, Emília de um Sítio do Pica-Pau Amarelo do terceiro milênio. Aficionada, pois sim, por K-pop, a onda musical e comportamental que vem dos jovens da Coreia do Sul; adicta em tiaras, as mais coloridas, de todos os tamanhos e tipos; especialista nas mídias sociais, interativa.

Falante, muito falante. E um coração gigante, para caber todo mundo.

Stella Navarro Drago, seu belo nome sonoro, nasceu com duas vontades: a de questionar e a de ajudar.

“Gosto de ajudar, sempre gostei. Quando você vê uma coisa que pode ajudar, ajuda.”

O questionamento está, de forma inseparável, ajustado ao desejo de auxílio, de corrigir injustiças. “Não gosto de coisa errada, não consigo ficar quieta quando vejo uma”, reconhece.

“Meninas usam azul e meninos rosa”, o título da postagem que fez contra movimentações retrógradas e excludentes, proclamando a liberdade de escolha do gênero e da cor. E do amor!
“Mas por que não?”, é o que sempre pergunta, contra rígidos e injustificados nãos.

Sim, liberdade é uma necessidade do ser, de qualquer ser, como o alimento, e para ela vem daí a predileção pela tiara, indumentária que enfeita mas não encarcera. “Tiara é um conceito para mim. Não gosto de prender o cabelo, gosto de liberdade. Tiara é a única coisa que dá para colocar no cabelo e não incomoda.”

E esse aqui à frente, calado, observador, é o Carlos. “Ele é meu irmão.” Ela já o adotou, antes mesmo da conclusão do processo de adoção do menino. É a primeira saída dele do abrigo com a (tomara) futura família.

Os pais da Stella, Roberta e Denis, à volta, dizem que é um sonho gestado há muito mais de nove meses: primeiro, queriam um filho biológico, tiveram-na, a estrelinha; depois queriam um filho adotivo, estão prestes a tê-lo. Carlos está com os olhos arregalados, ouve o testemunho da irmã, conhece o núcleo afetivo do entorno, quanta novidade.

E como costuma acontecer para quem está pronto para ela, a mudança se apresentou um dia para Stella: ei, olha eu aqui!
Ela passava pela rua e observou

Então Stella elaborou ela mesma, com a ajuda de parceiros (uma prima, artista, cedeu ilustração), uma linha de canecas inspiradoras para a Conviver, vendida pela internet. Os R$ 700,00 arrecadados com as vendas das canecas ajudaram a instituição a atravessar a crise mais difícil de sua história.

Na Conviver, também pôde compartilhar muita doçura, com a aula de brigadeiro que preparou para os alunos e para a qual fez questão de dizer que chegou atrasada, foi mal… “Minha relação com eles é uma questão de carinho. São muito lindos, não só por fora, como por dentro também.”

Ela é só uma criança de 10 anos, mas tem o sentimento do mundo. Que será?
“O futuro eu não sei”, responde rápido, franzindo as sobrancelhas bem marcadas. “Pode dizer ‘Vou ser tal coisa’, mas quando cresce vira outra.” Não é?
Se o futuro é um ponto de chegada ao qual se vai de presente em presente, Stella, estrelinha, só pode mesmo virar constelação.


Raimunda

Carolina Maria de Jesus outra vez

Dona Raimunda pede outra vez passagem.
Depois de quatro meses em casa com medo do novo coronavírus, ela voltou agora às ruas do Ipiranga e região para cumprir sua missão de catadora. “É muito ruim você querer sair de casa e não poder”, desabafa.

Seu carrinho de madeira, circulando sobre rodas de automóveis e puxado a muito tutano, está abarrotado de tudo que essa senhora de compleição forte conseguiu catar, ferro, papelão, plástico. Deve estar pesando uma enormidade. A venda reverterá no benefício dela e de seus dois filhos. Um deles sofreu de descolamento do fêmur e está impedido de trabalhar, conta.

Impossível ver a Raimunda e não lembrar da Carolina Maria de Jesus, a catadora que transformava seu dia a dia em literatura. Lenço na cabeça, tem algo também de Tia Anastácia, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a boa Raimunda. Deve ser muito por isso que a gente se sente logo à vontade perto dela e ela também não se incomoda com a indiscrição da gente.

Aos 74 anos, ela mostra um vigor, uma disposição de admirar, de aplaudir. Uma grande mulher.
Dona Raimunda é cearense de Araripe e, por isso, conterrânea do lendário Miguel Arraes, que fez carreira política em Pernambuco, tornando-se governador. Ela vive no Jardim Iguatemi, na vizinha zona leste, e para lá levava seu carrinho prenhe de possibilidades.

Que bom que Dona Raimunda voltou. Volte sempre, Dona Raimunda, o Ipiranga aprecia muito o seu trabalho.


Conceição

Uma mulher chamada furacão

Varrendo a calçada, é a Conceição. Subindo a Manifesto, descendo a Cisplatina, palmilhando a 1822, lá vem, lá vai a Conceição. Fiscalizando a própria obra, outro dia deu de subir no telhado, atravessou o muro do vizinho, saia da frente, que é o bonde da Conceição, ninguém segura essa mulher.

Naquele dia pararam o automóvel bem diante do portão dela, guia baixa, e sumiram por horas sem avisar. Quando voltaram para pegar o veículo, cadê as placas dele? Dona Conceição está sorrindo, como o gato que comeu o passarinho e a pena pendendo da boca denunciou. Mas, meu Deus, no jardim da Conceição, como enfeites, lá estão mais alguns pares de placas de outros autos, punidos pelo mesmo crime de estacionar em local proibido, o portão da casa dela, cuidado com a chave de fenda da Conceição.

“Às vezes eu tenho medo de mim mesma”, assusta-se, feito espelho. “Mas nos meus 84 anos, sempre andei de cabeça erguida. Nunca devi nada para ninguém.”

Perdeu o marido faz décadas, teve um único filho.
Faz pouco foi visitar a amiga antiga, dona de um Fusquinha vermelho, na Almirante Lobo (vira e mexe as duas dão umas voltas pelas ruas, Telma e Louise ipiranguistas), mas se esqueceu da máscara.

A amiga estava recebendo a visita de um primo e ambos torceram tanto o nariz para a Conceição desmascarada que ela resolveu ir embora, embora, frise, tenha mantido mais do que a distância social necessária.

Acontece que, no ímpeto da partida, não deu com o pano encharcado de água sanitária na entrada, medida preventiva, e levou o maior tombo, um sururu danado. “Não vou mais lá, se ela quiser, que venha aqui. Não vou ficar com o peso de ter passado o vírus para ela, não.”Conceição é daquelas meio resistentes, quando se trata de pandemia. “Eu não vou deixar de viver. Mas quando chega a hora de uma pessoa, não tem o que fazer. Eu estou viva.”

Conceição tem os olhos miudinhos e agudos. É boa nos negócios, mas também soma prejuízos com os inquilinos que têm, gente como a gente.
No último dia do ano (olha ela fazendo o V da vitória sobre o 2020), no primeiro do novo ano, no segundo… Eis a Conceição, não saia daqui, não.


Almerinda

Uma alma linda

Feliz de reencontrar Dona Almerinda! Nunca mais a vira desde aquele dia, na sua padaria DestLar, esquina da Brigadeiro Jordão com a Silva Bueno, num dia de dezembro de 2020. Estava, então, prestes a fechar as portas do estabelecimento que manteve como segunda casa, como segunda alma, como segundo corpo, ao lado do marido, Duarte Lopes Marinho, que morrera dois meses antes, em outubro, aos 89.

Desde que se aposentou a contragosto, Dona Almerinda Alves de Araújo, que completará 93 no próximo dia 7 de fevereiro, vive com uma filha, num apartamento pertinho da finada DestLar.

Nesta manhã de sábado (15), como em todas as outras, acorda bem cedinho para caminhar. “Eu sinto falta do público, trabalhei a vida toda com gente. Saio para caminhar para não ficar em casa, porque o tempo demora a passar”, sente sa-ú-dade, em bom português da sua Boa Terrinha lusitana, de onde veio aos 27.

“Eu pedia para os meus irmãos não se mudarem para a França e fui eu que saí primeiro. Eu, que nem conhecia o mar, passei dois dias sobre as águas sem nenhuma parada. Parece destino”, sorri, com a simpatia que lhe distingue no mundo.

Também sente muita saudade do marido, companheiro de uma vida. “Primeiro lhe fracassou um braço, depois lhe fracassou outro braço, depois lhe fracassaram as pernas e ele ia para a padaria carr’gado por um funcionário nos últimos dias.”

Um episódio trágico marcou a família: o acidente fatal que vitimou o genro, durante travessia de caminhão por Minas Gerais.

“Vivia dizendo para ele deixar onde morava em Guarulhos [Grande SP] e vir com a gente, nessa época morava na Bom Pastor, porque na nossa casa cabia”, entristece. Deixou viúva e suas duas filhas pequenas, moças hoje com mais de 20.

Costumavam ir os quatro juntos a Portugal todos os anos, mas depois do acidente não viajaram mais.

Dona Almerinda tem um percurso matutino: sai de seu prédio na Silva, dobra à esquerda, segue, depois dobra à direita na Cisplatina, em seguida à direita na Lino Coutinho, depois outra vez à direita, na Brigadeiro, para dobrar de novo na Silva e repetir o mesmo trajeto.

“Já estou na sexta volta!”, avisa, já se indo, sapatinhos coloridos de corrida nos pés, retomando o passo.


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