“EU SOU DE HOJE”, ABÍLIO GONÇALVES, BARBEIRO (1929-2020)

“EU SOU DE HOJE”, ABÍLIO GONÇALVES, BARBEIRO (1929-2020)

Abílio Gonçalves, o barbeiro mais antigo do Ipiranga (“porque o mais antigo morreu outro dia”, brincava), morreu ele mesmo no último dia 14 de fevereiro, aos 90 anos, devido a complicações de forte pneumonia.
Desde os 13 anos de idade, ocupou o mesmo “buraquinho”, como se referia divertido ao seu local de trabalho: o salão de barbeiro da rua Bom Pastor, 1.734, no Ipiranga, do qual viria a se tornar proprietário, anos depois.

“Devo minha profissão à minha mãe [Maria dos Santos], que me pôs aqui. Como sou obediente, não saí mais”

recordou, sorrindo, à reportagem do Ipiranga22 em novembro do ano passado. Foi a forma materna de endireitar o filho peralta, quebrador de vidraças com seu bodoque.

Seu Abílio de fato foi endireitado por dona Maria (o pai se chamava José Gonçalves e do avô Abílio veio o nome, como homenagem), que até na direita ele foi jogar o seu esporte, paixão favorita: ponta-direita de times de futebol de várzea da região, como o Monte Verde, o Tupi, o Bom Pastor e o Cisplatina.

“Eu chutava a bola tão alto, que dava tempo de ir na área cabecear a bola”,

costumava contar para a clientela que se sentava à sua cadeira. Que geralmente respondia, incrédula: “Pô, mas esse barbeiro é mentiroso para chuchu”, como o próprio barbeiro descrevia.
Seu Abílio era ipiranguista da gema: nascido, por mão de parteira, na casa da rua Honório dos Santos, aqui no bairro. Foi no dia 25 de abril de 1929.
Casou-se com dona Edir Virgílio Gonçalves, com quem teve duas filhas, Neusa e Sueli, esta última também cabelereira e quem cortava o cabelo do pai, como observamos no dia de nossa visita ao salão. “Tive sorte no casamento. Dizia: ‘Vou ficar com ela até o fim da vida’. E assim aconteceu.” Dona Edir veio a morrer em 2012.

Cercado por relíquias, objetos de devoção do seu clube de futebol do coração, o Corinthians, espalhados pelas paredes e prateleiras da barbearia, Seu Abílio filosofava sobre a vida, sentado com as pernas estiradas sobre uma banqueta.

“Eu não tenho saudade de nada. Não vai adiantar regredir às coisas que passaram. Eu sou de hoje”

“E não posso me queixar de nada. Não fiquei rico, mas tenho a minha casa.” É um apartamento situado no prédio bem diante de sua barbearia, na Bom Pastor. “Eu moro muito longe”, ria.
Seu Abílio gracejava até sobre a própria morte, os olhos sempre vivos, negros e ligeiramente puxadinhos, que sugeriam inexistente descendência oriental, o cabelo liso e branquinho.
“Eu quero ser cremado. E aí vou chamar meus amigos para o meu próprio churrasco”, gargalhava. “Não tem de pensar em visitar [o túmulo] nunca mais nada.”

E assim se fez: Seu Abílio foi cremado no Crematório da Vila Alpina, na zona norte de SP, no último dia 15, em cerimônia reservada a parentes e amigos.
Agora entristece passar ali na Bom Pastor e ver a porta clara de aço do salão, recoberta de pichações antigas, fechada não mais apenas para o “Volto já” da plaquinha indicando horário do almoço.
Ou será que ele volta? Hum, quem sabe..


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